quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O QUEIJO E OS VERMES: Circularidade cultural e feitiçaria.

Por: Claudia Zelini Diello

“Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos [...] e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses formam os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os outros, anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela massa, naquele mesmo momento...”

Este trecho do livro de Carlo Ginzburg, O Queijo e os Vermes, resumem o núcleo das idéias defendidas por Domenico Scandela, o moleiro conhecido como Menocchio, diante dos inquisidores italianos, em 1584.

Nascido em Montereale, aldeia do Friuli, foi denunciado ao Santo Ofício pelo pároco Dom Odorico Vorai, antigo desafeto que o acusava de pronunciar palavras “heréticas e totalmente ímpias”. Crítico do clero, da Igreja e da opressão contra os pobres, Menocchio foi descoberto por acaso quase quatro séculos depois. A análise cuidadosa de seu proce sso deu origem ao clássico O Queijo e os Vermes, livro publicado em 1976 e editado no Brasil 10 anos depois.

A história de Menocchio não é apenas um relato insólito de um personagem bizarro. Por Ginzburg, a análise do estranho caso de um moleiro perdido nos campos de uma Itália em luta contra o avanço protestante deu corpo a uma profunda reflexão sobre a escrita da história, suas dificuldades, desafios e possibilidades.

Ainda nos anos de 1960, quando pesquisava processos de bruxaria entre os séculos XVI e XVII, Ginzburg deparou-se com um conjunto de documentos sobre os benandanti, ou os andarilhos do bem, defensores das colheitas contra bruxos e feiticeiros. A análise do ritual de fertilidade seguido por esses camponeses, resultou no livro I benandanti, publicado originalmente em1966, e que revelou um núcleo de crenças populares ainda muito identificadas a resquícios de uma cultura oral, pagã e popular de longa duração, mas qu e paulatinamente foram assimilados à feitiçaria.

Ginzburg estaria analisando a essa altura, e segundo suas próprias palavras “a mentalidade de uma sociedade camponesa” e suas conclusões apontavam para um processo de aculturação dos benandanti, na medida em que, entre 1580 e 1650 estes passaram de uma atitude de defesa da autenticidade de suas crenças para uma aceitação gradativa da acusação de feitiçaria perpetrada pelos inquisidores.

Durante o trabalho sobre os benandanti, Ginzburg encontrou o processo de Menocchio e, dez anos depois, era publicada a história do moleiro friulano. Entre os dois livros, no entanto, um longo percurso teórico-metodológico alterou substancialmente as idéias de Ginzburg acerca das relações entre as classes subalternas e dominantes, ou, para falarmos dos processos inquisitoriais estudados, entre inquisidores e populares camponeses acusados de feitiçaria.

Se no caso dos benandanti a assimilação das acusações parecia refletir sem dificuldade a dominação de uma “mentalidade” vitoriosa, no caso de Menocchio as certezas deram lugar a uma flexibilidade maior e à necessidade de reformulações nas peças de um delicado quebra-cabeças.
Já no Prefácio de O queijo e os vermes o autor deix a clara a recusa do conceito de mentalidade, exatamente pelo que mais havia valorizado na trajetória dos andarilhos do bem: o caráter interclassista e de longa duração das crenças populares, tomadas sempre no que tinham de aparentemente imóvel, inconsciente, irracional.

Para Ginzburg, as idéias de Menocchio não podiam ser diluídas e ocultadas no que pudessem ter de original, sendo assim fez uso do termo “cultura” em sua acepção antropológica: conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamento próprio das classes subalternas num certo período histórico.

Mas além desse passo, Ginzburg defrontou-se ainda com o desafio de resgatar, no terreno da cultura, as diferentes maneiras de enfrentamento entre cultura dominante e subalterna.

Pela historia de Menocchio, um moleiro que destoava do seu grupo por saber ler e escrever, Ginzburg descobriu uma teia de imbricações, reapropriações e, mesmo admitindo ser Scandela e sua história “um fragmento perdido, que só nos alcançou por acaso [...], através de um gesto arbitrário”, fez da decifração de sua cosmogonia um ensaio de teoria e metodologia, um roteiro para o estudo do que hoje chamamos “história cultural”.

O contato com o mundo das letras, e mesmo com texto s sofisticados, não retirou Menocchio de sua cultura, mas, ao contrário, realçou a especificidade de suas interpretações, adaptadas a uma realidade ainda refratária a abstrações e fortemente marcada pela vivência concreta e materializada dos fenômenos religiosos e das religiosidades. Para entender a origem do mundo, Menocchio serviu-se de algo que lhe era familiar, cotidiano, conhecido: fez da origem do queijo e dos vermes, por analogia, a Gênese; através da mistura de cultos pagãos e cristãos deu suporte à sua formulação herética.

Mas se uma análise tão aprofundada da história de um herege que acabou queimado pela inquisição por não conseguir deixar de propagar suas idéias pode parecer apenas o relato excepcional de um personagem bizarro, devemos novamente estar atentos às advertências do autor: “dois grandes eventos históricos tornaram possível um caso como o de Menocchio: a invenção da imprensa e a Reforma”.

É, portanto, no cruzamento entre a micro-história de nosso moleiro e a macro-história das Reformas e das transformações que marcaram a Época Moderna que podemos entender a “produção” de um personagem como Menocchio. Domenico Scandela encarnou a dinâmica da circularidade cultural, tendo acesso a livros produzidos pela cultura letrada e adaptando suas leituras às vivências cotidianas de uma comunidade camponesa.

Ginzburg levaria ainda mais longe suas reflexões sobre os diferentes níveis de interpenetração das culturas com o seu História Noturna. Decifran do o sabá5, publicado em 1989. Com esse trabalho, praticamente se fecha o ciclo iniciado com os benandanti: partindo da força da cultura dominante, Ginzburg descobriu com Menocchio a resistência da cultura subalterna e a circularidade cultural entre as classes dominantes e populares.

Fruto da obsessão de inquisidores e juízes, o estudo do ritual do sabá feito por Ginzburg desvendou uma história “noturna” e desconhecida, alimentada por mitos e medos ancestrais, conformando o que o autor chamou de “formação híbrida de compromisso”, resultado híbrido de um conflito entre cultura folclórica e cultura erudita. Na história noturna do sabá, Ginzburg retoma a problemática dos benandanti e avança ainda mais teoricamente ao observar perseguidores e perseguidos igualmente atravessad os pela dinâmica dos encontros e embates culturais.

Como se vê, foram muitos os temas tratados por Carlo Ginzbrug ao longo de mais de 30 anos de pesquisa dedicada à feitiçaria, às religiosidades populares, à cultura em sua dimensão histórico-antropológica.

A abordagem sofisticada e minuciosa, a história cultural tal como concebida por Carlo Ginzburg se interessa pelo detalhe e pelo contexto, pelas micro e pelas macro-questões que, articuladas, podem nos aproximar um pouco mais de nossos antepassados. Decifração de indícios, ciência do particular, a história cultural se move em terreno acidentado e misterioso e, sem prescindir jamais das fontes, autoriza alguns vôos, muitos deles também noturnos, já que “a tentativa de conhecer o passado também é uma viagem ao mundo dos mortos.”

Carlo Ginzburg

Fonte:
O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. A primeira edição italiana do livro é da Giulio Einaudi Editore, 1976. A edição brasileira é da Companhia das Letras, 1986.

by Claudia
posted by Charles

2 comentários:

  1. Tem como vc postar esse livro pra gente ler?

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  2. aqui esta amigo, http://www.4shared.com/rar/2eBZGtMV/o_queijo_e_os_vermes_-_carlo_g.html
    mas irei colocar um post sobre isso... desculpe a demora, eu não tinha visto q haviam comentários.

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